terça-feira, 1 de outubro de 2013

CAUSOS DE CINEMA

Por Anderson Cássio

No segundo semestre de 2012 tive o privilégio de fazer parte da produção da Mostra Cinema e Direitos Humanos na América do Sul e presenciei neste festival  uma sessão de cinema que pode parecer por vezes banal mas,  quem gosta da história do cinema brasileiro, perceberá sua importância.

  Estava na Cinemateca Brasileira trabalhando em uma sessão da retrospectiva da obra de um dos mestres do documentário nacional, Eduardo Coutinho. A sessão era muito especial, pois ao término do filme haveria um bate-papo com o público contando com a presença do próprio realizador que, apesar da sua grande aversão à viagens de avião, à entrevistas e à saúde debilitada - pelos longos anos de tabagismo - aceitou o convite para vir a São Paulo.



Eduardo Coutinho
 Pois bem, ao final da conversa com o público me aproximo de Coutinho, a fim de auxiliá-lo a se levantar da poltrona quando um senhor também se aproxima do diretor e diz:
  - O senhor pode não se lembrar de mim, mas nós nos conhecemos.
  Um pouco surpreso, Coutinho responde:
  - Me perdoe, mas não estou lembrando.
  - Recife 64! O senhor ficou escondido três dias na minha casa.
  - Roberto*? Diz Coutinho meio incrédulo após pensar um pouco.
  - Sou eu mesmo!
  E abraçam-se efusivamente.


  O curto diálogo refere-se ao início de um período extremamente conturbado de nossa história, a ditadura militar. Em 1964 Coutinho estava filmando uma das obras-primas do nosso cinema, Cabra Marcado Para Morrer, uma narrativa semidocumental da vida do líder camponês João Pedro Teixeira, assassinado por líderes latifundiários da Paraíba em 1962. Poucos dias depois do golpe militar, o Engenho Galiléia, onde ocorriam as filmagens, foi cercado pelo Exército que estava atrás daquele bando de cabeludos (sinônimo de comunista na época) que portavam câmeras e ficavam entrevistando os campesinos.


  Alguns membros da equipe foram presos enquanto alguns outros, incluindo o próprio Coutinho, conseguiram escapar. O diretor, na sua rota de fuga, acabou por receber abrigo em Recife, do citado senhor que veio a reencontrar quarenta e oito anos depois.


  Em 1981 Coutinho consegue retomar o projeto retornando ao Engenho Galiléia para reencontrar parte dos camponeses com os quais filmou em 1964 e continuar o registro da sua luta contra os grandes produtores e finalizar o filme que, até então, havia ficado escondido dos militares.
  São causos que só o Cinema possibilita.

  *Nome fictício.




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